Visão geral sobre a gestão dos casos

  • Sem tratamento, a cólera pode matar até 50% dos pacientes com doença grave. O tratamento rápido e apropriado reduz significativamente o risco de morte.
  • Embora a referência para o tratamento da cólera seja uma TL inferior a 1%, não devem ocorrer mortes por desidratação devida à cólera.
  • Aproximadamente 80% das pessoas infectadas com cólera não desenvolvem sintomas da doença; essas pessoas podem transmitir a doença excretando a bactéria V. cholerae para o ambiente. A bactéria permanece nas suas fezes até 14 dias depois da infecção.

    Tabela 2. Grau de desidratação, sinais e planos de tratamento para os pacientes com cólera

    table-2

  • Entre os pacientes sintomáticos, aproximadamente 20% desenvolvem diarreia aquosa profunda que provoca desidratação grave e morte, se não for tratada.
  • A gravidade da doença está relacionada com o número de bactérias V. cholerae ingeridas, falta de imunidade adquirida por exposição anterior à infecção ou vacinação, falta de amamentação e consequente falta de imunidade passiva nos bebés, malnutrição, estado imunocomprometido, menor capacidade para produzir ácido gástrico (que neutraliza o agente patogénico) e ter grupo sanguíneo O.

Avaliação e triagem do paciente

  • Avaliar o grau de desidratação do paciente determina o plano de tratamento (Tabela 2).
  • A desidratação grave é uma emergência médica. O diagnóstico e o tratamento rápidos podem salvar vidas.
  • Os pacientes com poucos ou nenhum sinal de desidratação podem ser tratados com sucesso através da rápida administração de SRO.
  • Os pacientes com alguma desidratação ou desidratação grave devem ser admitidos em CTU /CTC. Os pacientes sem desidratação podem ser tratados em casa, num PRO ou nos serviços de ambulatório das CTU /CTC.

Registo e admissão de pacientes

  • Registar o paciente na lista linear/registo usado nas CTU /CTC ou PRO.
  • Para cada paciente, preencher o formulário de admissão e triagem com informação pessoal, dados clínicos, exame físico e diagnóstico, dados do tratamento e laboratoriais (resultados dos TDR, amostras colhidas e enviadas para cultura). O resultado (alta, morte, alta voluntária, transferência) deve ser preenchido mais tarde. Ver o Apêndice 12 – formulário de admissão e triagem.

Planos de tratamento

  • O tratamento baseia-se no grau de desidratação do paciente: sem desidratação, alguma desidratação ou desidratação grave. Os pacientes sem sinais ou com alguns sinais de desidratação são tratados com SRO (respetivamente plano A e plano B). Os pacientes com desidratação grave requerem reidratação IV (Plano C). Ver apêndice 11 – fluxograma para gestão dos casos de cólera.
  • O plano de tratamento A requer reidratação com SRO. Pode ser feito em casa, num PRO ou nos serviços de ambulatório das CTU /CTC. O plano A não exige admissão na zona de internamento da CTU /CTC, mas, os pacientes que são tratados numa unidade devem ser observados 2 - 4 horas antes da alta. Estes pacientes devem também ser incluídos na lista linear/registo dos pacientes.
  • Os planos de tratamento B e C exigem admissão nos serviços internamento de uma CTU /CTC para corrigir a perda de fluidos que já ocorreu no momento da admissão.
  • Apenas os pacientes com desidratação grave exigem o plano de tratamento C, administração de fluidos por via intravenosa. Os SRO devem também ser administrados quando o paciente conseguir beber com segurança.
  • Os antibióticos são indicados em pacientes com desidratação grave e, independentemente do grau de desidratação, em pacientes com elevada purga (pelo menos, uma evacuação por hora durante as primeiras quatro horas de tratamento) ou falha no tratamento (o paciente ainda está desidratado depois de completar as primeiras quatro horas de tratamento) ou em pacientes com condições ou comorbilidades concomitantes que representam elevado risco de cólera (ver abaixo tratamento com antibióticos).
  • Nas crianças com 6 meses a 5 anos — independentemente do grau de desidratação — a suplementação com zinco (20 mg p.o. de sulfato de zinco por dia durante 10 dias) deve ser iniciada imediatamente para reduzir o volume e a duração da diarreia.

Preparar e administrar SRO

  • A SRO deve ser preparada com água potável tratada com métodos apropriados (ver Apêndice 13 – métodos para o tratamento da água doméstica).
  • A SRO deve ser feita diariamente. Não deve ser guardada durante mais de 12 horas ou 24 horas, se refrigerada. Existem saquetas que já contêm sais e minerais para preparar a SRO.
  • A SRO deve ser administrada regularmente, em pequenas quantidades. Se um paciente vomitar a SRO, reduzir a administração de SRO e voltar a aumentar lentamente, quando os vómitos pararem.
  • Além das quantidades de SRO especificadas no plano de tratamento, os pacientes devem receber mais SRO para compensar as perdas por diarreia e vómitos contínuos.

Plano A. Reidratação oral dos pacientes sem sinais de desidratação

  • Os pacientes sem sinais de desidratação devem ser tratados com SRO.
  • Não é necessário internar pacientes sem sinais de desidratação nos serviços de internamento das CTU /CTC. Podem ser tratados com SRO em casa, nos PRO ou nos serviços de ambulatório das CTU /CTC.
  • Se o paciente for visto num PRO ou CTU /CTC:
    • manter o paciente sob observação durante 2–4 horas, para ter a certeza de que a pessoa está a tolerar a SRO;
    • durante a observação e antes de enviar os pacientes para casa, fornecer-lhes instruções claras sobre os cuidados; aconselhar o paciente (ou o cuidador) a continuar a tomar SRO depois de cada evacuação de fezes moles e a voltar imediatamente, se a sua condição piorar (vómitos repetidos, maior número de evacuações ou se beber ou comer pouco).
  • Os pacientes devem tomar SRO depois de evacuarem fezes moles, para manter a hidratação até a diarreia parar.
  • Depois de cada evacuação de fezes moles, administrar as seguintes quantidades de SRO (Tabela 3).

Plano B. Reidratação oral para pacientes com alguma desidratação

  • Os pacientes que apresentem sinais de alguma desidratação devem ser admitidos nas CTU/CTC.
  • Como tratamento inicial, administrar SRO de acordo com o peso do paciente (75 ml/kg) nas primeiras 4 horas.
  • Adicionar a quantidade especificada de SRO para substituir as perdas provocadas pela diarreia (conforme a Tabela 3).

    Tabela 3. Quantidade de SRO a administrar depois de cada evacuação de fezes moles por faixa etária

    table-3

  • Os pacientes com cólera e alguns sinais de desidratação não necessitam de terapêutica IV, mas devem ser monitorizados de perto durante as primeiras 4 horas.
    • Se o paciente tiver vómitos graves ou não conseguir beber ou se, em algum momento, surgirem sinais de desidratação grave, mudar imediatamente para o plano de tratamento C.
    • Se ainda persistirem sinais de alguma desidratação depois das primeiras 4 horas, repetir o plano de tratamento B durante 4 horas e reavaliar.
    • Se não houver sinais de desidratação após as primeiras 4 horas de tratamento, o paciente pode ter alta e ser enviado para casa. Aconselhar os pacientes (ou os cuidadores) a continuarem a tomar SRO depois de cada evacuação de fezes moles e a regressarem imediatamente se a sua condição piorar (vómitos repetidos, maior número de evacuações ou se beber ou comer pouco).

Plano C. Terapêutica intravenosa (IV) para desidratação grave

  • A desidratação grave é uma emergência médica e os pacientes devem ser urgentemente tratados. Segundos podem fazer a diferença.
  • Os pacientes com desidratação grave devem iniciar imediatamente a terapêutica com fluidos por via intravenosa.
  • Logo que o paciente consiga beber, administrar SRO (conforme a Tabela 3), além dos fluidos IV.
  • O lactato de Ringer é a primeira escolha de fluido IV. Se não houver lactato de Ringer, podem ser utilizadas as seguintes soluções IV:
    • soro fisiológico
    • 5% de glicose em solução salina
    • soro fisiológico para a cólera.
  • Uma solução simples de 5% de glicose (dextrose) não é recomendada.
  • Administrar um total de 100 ml/kg de solução de lactato de Ringer dividida em dois períodos. A taxa de infusão em cada período é mais lenta nas crianças com menos de 1 ano de idade (ver Tabela 4).

    Tabela 4. Quantidade e solução de lactato de Ringer por faixa etária.

    table-4

  • Para fornecer uma quantidade adequada de fluido durante o primeiro período (tratamento com bólus) pode ser necessária mais do que uma administração IV.
  • Quando não for possível a reidratação IV e o paciente não conseguir beber, a solução SRO pode ser administrada por sonda nasogástrica. Mudar para reidratação IV, logo que possível. Não usar sonda nasogástrica nos pacientes que têm vómitos.
  • Outros acessos vasculares, como a veia femoral ou a via intraóssea podem ser usados, se os profissionais tiverem a devida formação e estiverem disponíveis os materiais necessários.
  • Os pacientes devem ser incentivados a beber SRO logo que estiverem completamente conscientes e não estejam a vomitar.
  • A saída de fluido deve ser medida e volumes equivalentes de fluido adicionados à quantidade descrita para o tratamento inicial. Esse fluido pode inicialmente ser administrado com um fluido IV, mas deve ser administrado com SRO logo que os pacientes possam beber com segurança.
  • Monitorizar de perto o paciente e fazer uma reavaliação frequente (a cada 15–30 minutos).
  • Depois de 6 horas nas crianças menores de 1 ano, ou 3 horas em todos os outros pacientes, efetuar uma reavaliação completa. Se a hidratação tiver melhorado e o paciente conseguir beber, mudar para o plano de tratamento B, se ainda persistir alguma desidratação, ou para o plano de tratamento A, se não existirem sinais de desidratação.

Complicações

  • As crianças com malnutrição aguda grave (MAG), as pessoas idosas e as pessoas com condições crónicas não controladas (como insuficiência cardíaca congestiva, diabetes, hipertensão) são especialmente vulneráveis a complicações.
  • Se for administrado demasiado fluido IV poderá ocorrer edema pulmonar e se for administrado muito pouco fluido poderá ocorrer insuficiência renal; poderão ocorrer hipoglicemia e hipocalcemia, especialmente em crianças malnutridas que sejam reidratadas apenas com lactato de Ringer.

Tratamento com antibióticos

  • Os antibióticos podem reduzir o volume e a duração da diarreia e o período de eliminação do V. cholerae.
  • Os antibióticos são indicados para:
    • pacientes com cólera hospitalizados com desidratação grave
    • pacientes com purga elevada (pelo menos, uma evacuação por hora durante as primeiras 4 horas de tratamento) ou insucesso do tratamento (o paciente continua desidratado depois de completadas as 4 horas iniciais da terapêutica de reidratação), independentemente do grau de desidratação; e
    • pacientes com condições concomitantes (incluindo gravidez) ou comorbilidades (como MAG, VIH), independentemente do grau de desidratação.
  • Os antibióticos são administrados logo que o paciente seja capaz de tomar medicação oral (depois de pararem os vómitos).
    • Doxiciclina — dose única (300 mg para adultos; 2–4 mg/kg para crianças menores de 12 anos) — é o antibiótico indicado para todos os pacientes, incluindo as mulheres grávidas.
    • Se for documentada resistência à doxiciclina, administrar azitromicina 1 g ou ciprofloxacina 1 g, por via oral, em dose única, para adultos. Para as crianças menores de 12 anos, administrar azitromicina 20 mg/kg (máx. 1 g) ou ciprofloxacina 20 mg/kg (máx. 1 g), por via oral, em dose única. Ver Tabela 5.

Tabela 5. Tratamento com antibióticos

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  • O laboratório deve monitorizar os padrões de resistência da estirpe no início e durante o surto e manter o pessoal clínico atualizado para adaptar o tratamento em conformidade (ver Secção 4 – monitorização do surto).
  • A quimioprofilaxia de massa não é recomendada. A quimioprofilaxia seletiva pode ser considerada nos contextos de alto risco, como as prisões.

Suplemento de zinco para crianças

  • O suplemento de zinco no tratamento de crianças entre 6 meses e 5 anos com diarreia aquosa (independentemente da causa ou grau de desidratação) reduz o volume e a duração da diarreia. Se disponível, a suplementação (20 mg p.o. de sulfato de zinco, por dia, durante 10 dias) deve ser imediatamente iniciada.
  • O zinco pode reduzir a absorção de algumas classes de antibióticos, incluindo a ciprofloxacina. Para se obter o melhor resultado com essas classes de medicamentos, os antibióticos devem ser administrados 2 horas antes do zinco ou 4–6 horas depois do zinco.
  • As crianças que recebem alimentos terapêuticos para o tratamento da MAG não precisam de suplemento de zinco, pois esses alimentos contêm zinco suficiente.

Alta e educação em saúde e higiene

Considerar a alta, se o paciente:

  • não tiver sinais de desidratação
  • conseguir tomar a SRO sem vomitar
  • não tiver diarreia aquosa durante 4 horas
  • conseguir andar sem ajuda
  • conseguir urinar

Antes da alta:

  • Os pacientes devem receber instruções sobre quando devem voltar à UTC /CTC e sobre como evitar a cólera.
  • Fornecer SRO aos pacientes e seus cuidadores e confirmar se eles sabem preparar corretamente e administrar SRO em casa, sem supervisão.
  • Informar o paciente, familiares e cuidadores acerca das precauções e instruções a nível do domicílio, da seguinte forma:
    • Beba e use água potável.
    • Lave as mãos com água potável e sabão ou com desinfetante à base de álcool nos momentos críticos, inclusive depois de usar um sanitário ou de manusear fezes de crianças e antes de preparar e comer alimentos. Quando tratar de um paciente, lave sempre as mãos antes e depois de prestar os cuidados, depois de mexer em objetos sujos (tais como, peças de vestuário, roupa de cama) ou depois de tocar em fluidos corporais.
    • Cozinhe bem os alimentos e coma-os enquanto estão quentes.
    • Remova e lave roupa de cama ou de vestir que possa ter tido contacto com fezes diarreicas com solução de cloro a 0,2%. Se não houver cloro disponível, as roupas dos pacientes podem ser desinfetadas agitando-as durante 5 minutos em água a ferver e secando-as à luz direta do sol ou lavando-as com sabão e deixando secar bem, à luz direta do sol.
    • Se um membro da casa desenvolver diarreia aquosa aguda, administrar SRO e procurar imediatamente cuidados de saúde.
    • Quando cuidar de pessoas doentes com cólera, não sirva alimentos ou bebidas a pessoas que não vivem em casa.
    • Poderá receber pessoas, se o paciente quiser companhia; as visitas devem também cumprir as recomendações sobre higiene das mãos.

Preparação da SRO

  • A SRO deve ser preparada com água potável tratada por métodos apropriados (ver Apêndice 13 – métodos para tratamento da água doméstica).
  • A SRO deve ser preparada diariamente e não deve ser guardada durante mais de 12 horas à temperatura ambiente ou até 24 horas, se for refrigerada.
  • Existem saquetas já preparadas contendo sais e minerais para preparar a SRO. O volume de água potável a usar para dissolver uma saqueta de SRO está indicado na saqueta.

Tratamento da cólera em crianças com MAG

  • As crianças mal nutridas que tenham cólera correm risco de complicações e morte.
  • Transferir as crianças com MAG e suspeita de cólera para tratamento imediato numa unidade de tratamento da cólera (CTU/CTC).
  • A avaliação do estado de malnutrição da criança e o nível de desidratação determinarão o plano de tratamento.
  • Para a reidratação oral das crianças com MAG durante um surto de cólera, administrar SRO normal. Não administrar ReSoMal (Solução de Reidratação para a Malnutrição).
  • Para a desidratação grave que exija terapêutica IV, seguir as orientações de reidratação para crianças malnutridas.
  • A reidratação das crianças com MAG deve ser devidamente monitorizada; existe um sério risco de hidratação excessiva.
  • A amamentação e a alimentação com leite terapêutico devem prosseguir durante a reidratação.

Tratamento da cólera na gravidez

  • As mulheres grávidas com cólera correm um risco muito maior de perder os fetos, em comparação com a população das mulheres grávidas em geral. Não existem evidências que comprovem que o risco de infeção ou gravidade de um episódio de cólera seja maior entre as mulheres grávidas.
  • O risco de perda do feto depende do grau de desidratação e vómitos, com uma desidratação mais grave e a ocorrência de vómitos a aumentar o risco de perda fetal.
  • O tratamento com antibióticos deve ser administrado a todas as mulheres grávidas com cólera, independentemente do seu grau de desidratação. Veja acima o tratamento com antibióticos.
  • A desidratação pode ser difícil de avaliar nas últimas fases da gravidez, resultando numa subestimação da gravidade da desidratação. O grau de desidratação e o tratamento das mulheres grávidas deve ser acompanhado de perto para manter a desidratação e a pressão arterial sistólica adequada com o objetivo de assegurar o fluxo sanguíneo uterino adequado.
  • O uso da VOC como medida preventiva é considerado seguro e é recomendado na gravidez (ver Secção 9 – vacina oral da cólera).
  • Nos grandes surtos, organizar as CTC/CTU de modo a garantir a privacidade das mulheres grávidas, especialmente durante o trabalho de parto e o parto, e assegurar o acesso aos serviços de saúde reprodutiva.

Para mais informação

  1. Technical Note Organization of Case Management during a Cholera Outbreak. Global Task Force on Cholera Control. June 2017 Click here
  2. Cholera outbreak: assessing the outbreak response and improving preparedness. Global Task Force on Cholera Control. 2010 Click here
  3. Managing a cholera epidemic. Chapter 5. Cholera case management. MSF. August 2017. Click here
  4. Technical Note Use of antibiotics for the treatment and control of cholera. Global Task Force on Cholera Control. May 2018 Click here
  5. Treatment of cholera in children with SAM